top of page

Oeste de Castela-Mancha - Parte II - Centro da Espanha - 2009

  • Foto do escritor: Roberto Caldas
    Roberto Caldas
  • 21 de abr. de 2021
  • 17 min de leitura

Atualizado: 20 de mai. de 2021


Entrada de El Toboso, a terra natal da princesa dona Dulcinea del Toboso, a grande paixão de Dom Quixote de la Mancha. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.


A continuação do lado centro-oeste da comunidade autônoma de Castela-Mancha para nós, naquela viagem, foi percorrer parte dos caminhos de Dom Quixote, no livro realizado por quem nós consideramos o maior escritor da língua espanhola e um dos maiores do mundo: Miguel de Cervantes.


Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, província de Madrid, em 1547. Morou em diversas cidades espanholas e também em Roma, a serviço do cardeal Acquaviva. Integrante da Armada Espanhola, participou da batalha naval de Lepanto, em 1571, que representou uma grande vitória cristã sobre os muçulmanos e o fim da expansão islâmica no Mediterrâneo. Infelizmente, durante essa batalha, Cervantes sofreu vários ferimentos que lhe fizeram perder o movimento do braço esquerdo. Para piorar sua situação, de regresso à Espanha, foi feito prisioneiro por corsários e mantido cativo durante cinco anos em Argel, na África, sendo liberto por intervenção do frei Juan Gil, da Ordem dos Trinitários. Na época de uma segunda prisão, já na Espanha, ele começou a escrever um romance com o propósito de refutar os livros de cavalaria, um gênero que, naquela época, começava a entrar em decadência. A primeira parte foi terminada em 1604 e publicada em 1605, sob o título de "El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha". Logo depois, surgiu uma continuação apócrifa, sob o pseudônimo Alonso Fernández de Avellaneda. Irritado, Cervantes se apressou em escrever a segunda parte, em 1615, com o nome de "Del Ingenioso Cavallero Don Quixote de la Mancha". Em 1617, as duas partes foram publicadas reunidas em Barcelona. É um dos livros mais editados do mundo. Cervantes faleceu em 23 de abril de 1616.


No romance, Cervantes conta a história de um fidalgo espanhol, de cerca de cinquenta anos e de sobrenome Quijada ou Quijano, que, após mergulhar nos romances de cavalaria, perde o juízo e resolve sair pelos campos da Espanha para participar de aventuras da cavalaria andante. Passa, então, a adotar o nome de Quijote (em espanhol). Na primeira saída, vai sozinho, quando então se sagra cavaleiro em uma venda de beira de estrada, pensando estar em um castelo. Na próxima saída, vai na companhia de seu "escudeiro" Sancho Panza (em espanhol), um pobre agricultor, vizinho seu, a quem prometeu, caso as aventuras fossem exitosas, conceder-lhe uma ilha para governar. Na terceira saída, novamente o faz na companhia de Sancho. Nessas ocasiões, com sua mente embotada pelas estórias de cavalaria, acreditando estar diante de palácios, castelos e alcázares (castelos-fortalezas) e na companhia de princesas e nobres, quando, na verdade, na maioria das vezes, está interagindo com gente do povo, remediada ou pobre, como vendeiros, monges, pastores, carreteiros, lavradores e prostitutas. E com eles, agindo como se estivesse diante de aventuras envolvendo magos, gigantes e outros cavaleiros, faz as piores "tonterías".


a- El Toboso

El Toboso é uma cidade da região natural da Mancha, famosa porque Cervantes a escolheu como o lugar habitado por Dulcinea, a dama de Dom Quixote de la Mancha.


Segundo o que se diz, Cervantes teria se inspirado na senhora Ana Martínez Zarco de Morales para criar a personagem Dulcinea, cuja casa, do século XVI, foi restaurada na década de 1960 para ser a Casa-Museo Dulcinea, que tivemos o prazer de visitar.


Em um dos episódios do livro, Dom Quixote e Sancho Pança entram na cidade de El Toboso atrás de encontrar a casa de Dulcinea, que para o "cavaleiro" é um palácio, mas, na tentativa, Dom Quixote a confunde com a Iglesia de San Antonio Abad, que teve o começo de sua construção em 1525, no estilo gótico tardio ou gótico Isabel. A igreja é citada no capítulo IX da segunda parte da obra. Veja-se:


"Meia-noite era por fio, pouco mais ou menos, quando dom Quixote e Sancho deixaram o monte e entraram em el Toboso. Estava o povoado em um sossegado silêncio, porque todos os seus habitantes dormiam e repousavam à perna estendida, como eles dizem. Era noite meio clara, posto que Sancho quisesse que fosse de todo escura, por achar em sua escuridão desculpa de sua estupidez. Não se ouvia em todo lugar senão latidos de cães que trovejavam nos ouvidos de dom Quixote e perturbavam o coração de Sancho. De quando em quando zurrava um jumento, grunhiam porcos, miavam gatos, cujas vozes, de diferentes sons, aumentavam com o silêncio da noite, tudo o que levava o cavaleiro apaixonado a ter um mau presságio, mas, com tudo isso, disse a Sancho:


"- Sancho filho, guia-me ao palácio de Dulcinea, talvez possa ser que a achemos desperta.


"- A que palácio tenho de guiá-lo, corpo do sol - respondeu Sancho - que nele que eu vi a sua grandeza não era senão casa muito pequena?


"- Devia de estar retirada, então - respondeu dom Quixote - em algum pequeno apartamento de seu alcázar, se aquecendo sozinha com suas donzelas, como é uso e costume das altas senhoras e princesas.


"- Senhor - disse Sancho - já que vossa mercê quer, apesar de mim, que seja alcázar a casa de minha senhora Dulcinea, é hora esta porventura de achar a porta aberta? E será bom que batemos para que possam nos ouvir e nos abram, deixando todas as pessoas em alvoroço? Vamos por dita a chamar à casa de nossas mancebas, como fazem os folgados, que chegam, e chamam, e entram a qualquer hora, por tarde que seja?


"- Achemos, primeiro, uma por uma o alcázar - replicou dom Quixote -; que então eu te direi, Sancho, o que será bem que façamos. E advirto, Sancho, que eu vejo pouco, o que aquele vulto grande e sombra que desde aqui se descobre deve de ser o palácio de Dulcinea.


"- Pois guie vossa mercê - respondeu Sancho -; talvez será assim; ainda que eu o verei com os olhos e o tocarei com as mãos, e assim o crerei eu como crer que é agora de dia.


"Guiou dom Quixote, e havendo andado como duzentos passos, deu com o vulto que fazia a sombra, e viu uma grande torre, e logo conheceu que o tal edifício não era alcázar, senão a igreja principal do povoado, e disse:


"- Demos com a igreja, Sancho.


"- Eu o vejo - respondeu Sancho -. E reza a Deus que não demos com nossa sepultura; que não é bom sinal andar pelos cemitérios a toda hora, e mais havendo eu dito a vossa mercê, se mal não me lembro, que a casa desta senhora há de estar em um beco sem saída.


"- Maldito sejas de Deus, mentecapto! - disse dom Quixote - Onde tu achares que os alcazáres e palácios reais estejam edificados em becos sem saída?" (tradução livre do espanhol - págs. 498/499 - "El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra, Gênese e vocabulário de Martín Alonso, Editorial EDAF. S. A., Jorge Juan, 30, Madrid, 17ª edição, junho 2000 - grifos em negrito nossos.


E aqui está a igreja, que Dom Quixote confundiu com a casa (palácio) da sua dama Doña Dulcinea del Toboso.


Iglesia de San Antonio Abad; a portada principal está localizada na fachada sul; guardada por um grande pórtico com arco de meio ponto, ela possui dois corpos: o inferior, um arco de meio ponto ladeado por quatro colunas dóricas e dois nichos vazios; o superior, frontão triangular sobre um nicho contendo Nossa Senhora da Imaculada Conceição. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.


Torre da Iglesia de San Antonio Abad, construída no século XVI, de grandes dimensões e seção quadrada, conta com três corpos: o inferior, de estilo plateresco, é de mampostería (pedras irregulares), com janela alargada decorada com galões; os dois superiores estão trabalhados com pedras regulares (sillería) e seus vãos são de arco de meio ponto acolchoado, de estilo herreriano; o coroamento é uma balaustrada em pedra arrematada com bolas. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.


A cidade explora muito a fixação de Dom Quixote em sua dama preferida, Dulcinea del Toboso.


Esculturas de Dulcinea e Dom Quixote, Taverna"El Sueño de Quijano", encontro que ocorreu somente na mente do cavaleiro da triste figura. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.


No livro, Cervantes faz com Sancho Pança promova o encontro, na saída de El Toboso, de Dom Quixote com sua paixão platônica Doña Dulcinea; na verdade, uma lavradora, uma aldeã, que o escudeiro aponta como se fosse a dama, aproveitando-se do juízo perturbado de seu amo. Veja-se:


"- Senhor, já se vem a mais andar o dia e não será acertado deixar que nos ache o sol na rua, melhor será que nós saiamos fora da cidade, e que vossa mercê se embosque em alguma floresta aqui próxima, e eu voltarei de dia, e não deixarei canto em todo este lugar onde não busque a casa, alcázar ou palácio de minha senhora, e assaz seria de desgraçado se não a achasse; e achando-a, falarei com sua mercê, e o direi onde e como fica vossa mercê esperando que lhe dê ordem e sinal para vê-la, sem menoscabo de sua honra e fama.


"- Há dito, Sancho - disse dom Quixote -, mil sentenças encerradas no círculo de breves palavras; o conselho que agora me há dado lhe apeteço e recebo de boníssima vontade. Vem, filho, e vamos buscar onde me embosque; que você voltará, como dizes, a buscar, a ver e a falar à minha senhora, de cuja discrição e cortesia espero mais que milagrosos favores. (pág. 501)


(...)


"(...) assim quando dom Quixote se emboscou na floresta, azinheira ou selva junto ao grande Toboso, mandou Sancho voltar à cidade, e que não voltasse à sua presença sem haver primeiro falado de sua parte à sua senhora, pedindo-lhe que fosse servida de deixar-se ver de seu cativo cavaleiro (...). (pág. 502)


(...)


"Com isso que pensou Sancho Pança ficou sossegado seu espírito, e teve por bem acabado seu negócio, e detendo-se ali até a tarde, por dar lugar a que dom Quixote pensasse que lhe havia tido tempo para ir e voltar de El Toboso; e sucedeu-lhe tudo tão bem, que quando se levantou para subir no russo viu que de El Toboso em direção aonde ele estava, vinham três lavradoras sobre três jumentos, ou jumentas, que o autor não o declara, ainda que mais se pode crer que eram burricas, por ser ordinária cavalaria das aldeãs, mas como não vai muito nisto, não há por que nos determos em averiguá-lo. Em resolução: assim logo que Sancho viu as lavradoras, a passo rápido voltou a buscar a seu senhor dom Quixote, e achá-lo suspirando e dizendo mil amorosas lamentações. (...) (págs. 504/505)


(...)


"Já nisto saíram da selva e descobriram próximo as três aldeãs. Estendeu dom Quixote os olhos por todo o caminho de El Toboso, e como não viu senão as três lavradoras, perturbou-se todo e perguntou a Sancho se as havia deixado fora da cidade.


"- Como fora da cidade? - respondeu - Porventura tem vossa mercê os olhos na nuca, que não vê que são aquelas que aqui vêm, resplandecentes como o sol ao meio-dia?


"- Eu não vejo, Sancho - disse dom Quixote -, senão a três lavradoras sobre três burricos.


"- Agora me livre Deus do diabo! - respondeu Sancho -. E é possível que três 'hacaneas', ou como se chamem, brancas como o campo de neve, lhe pareçam a vossa mercê burricos? Salve o Senhor, que me raspe estas barbas se tal for verdade!


"- Pois eu te digo, Sancho amigo - disse dom Quixote -, que é tão verdade que são burricos ou burricas, como eu sou dom Quixote e tu Sancho Pança; ao menos, a mim parecem tais.


"- Cale-se, senhor - disse Sancho -; não diga tal palavra, senão abra seus olhos, e venha a fazer reverência à senhora de seus pensamentos, que já chega perto.


"E dizendo isso, se adiantou a receber às três aldeãs, e apeando-se do russo, segurou o cabresto do jumento de uma das três lavradoras, e fincando ambos os joelhos no solo, disse:


"- Rainha e princesa e duquesa da formosura, vossa altivez e grandeza seja servida de receber em sua graça e bom talante ao cativo cavaleiro vosso, que ali está feito pedra mármore, todo perturbado e sem pulso de ver-se ante vossa magnífica presença. Eu sou Sancho Pança, seu escudeiro, e ele é o aprumado cavaleiro dom Quixote de la Mancha, chamado por outro nome o Cavaleiro da Triste Figura.


"A esse tempo já se havia posto dom Quixote de joelhos junto a Sancho, e olhava com olhos decompostos e vista turbada a quem Sancho chamava rainha e senhora; e como não descobrisse nela senão uma moça aldeã, e não de muito bom rosto, porque era cara redonda e chata, estava suspenso e admirado, sem ousar despregar os lábios. As lavradoras estavam além do mais atônitas, vendo aqueles dois homens tão diferentes fincados de joelhos, que não deixavam passar adiante a sua companheira; mas rompendo o silêncio a mais determinada e desgostosa disse:


"- Saiam da frente, picantes, e deixem-nos passar, que vamos com pressa.


"Ao que respondeu Sancho:


"- Oh princesa e senhora universal del Toboso! Como vosso magnânimo coração não se enternece vendo ajoelhado ante vossa sublime presença a coluna e o sustento da andante cavalaria?


"Ouvindo isso, outra das duas disse:


"- Mas eu que te sacudo, burra de meu sogro! Olha com que se veem os senhores agora a fazer burla das aldeãs, como se aqui não soubéssemos deitar desfeitas como eles!; vão ao seu caminho, e deixem-nos fazer o nosso, e ficará tudo bem.


"- Levanta-te, Sancho - disse a este ponto dom Quixote -, que eu já vi que a Fortuna, de meu mal não acaba, tem tomado os caminhos todos por onde possa vir algum contentamento a esta alma mesquinha que tenho nas carnes. E tu, oh extremo do valor que se pode desejar, fim da gentileza humana, único remédio deste aflito coração, que te adora!, já que o maligno encantador me persegue, e pôs nuvens e cataratas em meus olhos, e para somente eles e não para outros há mudado e transformado tu sem igual formosura e rosto no de uma lavradora pobre, se já também o meu não lhe há mudado no de algum monstro, para fazer-lhe aborrecível a teus olhos, não deixes de olhar branda e amorosamente, vendo nesta submissão e prostração que à tua distorcida formosura faço, a humildade com que minha alma te adora!


"- Fique com minha água - respondeu a aldeã - Amiguinha, sou eu para ouvir asneiras! Afastem-se e deixem-nos ir, e lhes agradeceremos.


"Afastando-se Sancho e deixando-a ir, contentíssimo de haver se saído bem de seu enredo. Apenas se viu livre a aldeã que havia feito o papel de Dulcinea, quando picando a sua 'cananea' com um aguilhão que em um pau trazia, deu a correr pelo prado adiante; e como a burrica sentia a ponta do aguilhão, que a fustigava mais do que o normal, começou a corcovear, de maneira que deu com a senhora Dulcinea por terra; o qual visto por dom Quixote, acudiu a levantá-la, e Sancho para compor e amarrar a sela, que também chegava ao ventre da jumenta. Acomodada, pois, a sela, e querendo dom Quixote levantar sua encantadora senhora nos braços sobre a jumenta, a senhora, levantando-se do solo, o livrou daquele trabalho, porque recuando um pouco, tomou uma corrida, e postas ambas as mãos sobre as ancas da jumenta, deu com seu corpo, mais ligeiro que um falcão, sobre a sela e caiu escanchada como se fosse um homem; e então disse Sancho:


"- Salve Roque, que é a senhora nossa ama mais ligeira que um falcãozinho, e que pode ensinar a montar a cavalo por salto ao mais habilidoso cordovês ou mexicano! A aba traseira da sela passou de um pulo, e sem esporas faz correr a 'hacanea', como uma zebra, e não ficam atrás suas donzelas; que todas correm como o vento.


"E assim era verdade: porque em se vendo Dulcinea a cavalo, todas picaram atrás dela e dispararam a correr, sem voltar a cabeça atrás pelo espaço de mais de meia-légua." (tradução livre do espanhol - págs. 506/508 - "El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra, Gênese e vocabulário de Martín Alonso, Editorial EDAF. S. A., Jorge Juan, 30, Madrid, 17ª edição, junho 2000 - grifos em negrito nossos.


A importância da estória é tão grande para a cidade de El Toboso e para o próprio país, que se promoveu a reconstrução da casa do século XVI, da senhora Ana Martínez Zarco de Morales, apontada como a inspiradora da personagem Dulcinea, conseguindo uma boa reprodução de um casarão manchego como devia ser. Possui dependências de trabalho, pombal, horta, mais os habituais aposentos de uma moradia. Foi mobiliada com peças da época.


Fachada da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, de mampostería (pedras irregulares), El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Cozinha da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Grande Pátio Traseiro ou Curral da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Sala da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, com móvel-escritório (com diversos compartimentos). El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Quarto (Alcova) com estrado feminino (latrina) da Casa-Museo Dulcinea del Toboso. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Dormitório da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, com uma boa cama de nogueira, roupeiro apainelado, ambos do séc. XVII. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.



Fachada da Casa-Museo Dulcinea del Toboso, com escudos das famílias Martínez Zarco de Morales. El Toboso, Província de Toledo, Castela-Mancha, Espanha.


b - Campo de Criptana


Campo de Criptana é um município espanhol da região natural de La Mancha que conserva dez moinhos de vento semelhantes aos que Dom Quixote atacou no capítulo VIII da primeira parte do livro de Cervantes. Dos dez, três são do século XVI: Burleta, Infanto e Sardinero.


Embora isso não fique muito claro no romance, muitos dizem, pela quantidade de engenhos, que Dom Quixote lutou contra o moinho de vento aqui.


No episódio, Dom Quixote, por conta de sua confusão mental, acredita que os moinhos de vento são terríveis gigantes, que devem ser derrotados e mortos pelo cavaleiro andante, para sua fama e para a defesa da humanidade, que não merece criaturas tão perniciosas no mundo. Na ocasião, o Cavaleiro da Triste Figura ataca com uma lança o moinho, atingindo a hélice do engenho, que, com o movimento da asa, é jogado junto com seu cavalo ao solo do campo. Veja-se:


"Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e assim quando dom Quixote os viu, disse a seu escudeiro:


"- A ventura vai guiando nossas coisas melhor do que acertaríamos se desejássemos; porque os vê ali, amigo Sancho Pança, onde aparecem trinta ou pouco mais gigantes desaforados, com quem penso fazer batalha e tirar-lhes a todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus arrancar tão mal semente de sobre a face da terra.


"- Que gigantes? - disse Sancho Pança.


"- Aqueles que ali vês - respondeu seu amo - dos longos braços, alguns dos quais com quase duas léguas de comprimento.


"- Olhe vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, senão moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as hélices, que, rodadas pelo vento, fazem mover a pedra do moinho.


"- Bem parece - respondeu dom Quixote - que tu não estás bem cursado nestas aventuras; eles são gigantes, e se tens medo, retira-te daqui e põe-te em oração no tempo em que eu vou entrar com eles em uma feroz e desigual batalha.


"E dizendo isso, deu com as esporas no seu cavalo Rocinante, sem atender às vozes que seu escudeiro lhe dirigia, advertindo-o que, sem dúvida, eram moinhos de vento, e não gigantes, aqueles que ele ia acometer. Mas ele ia tão certo que eram gigantes, que nem ouvia os gritos de seu escudeiro Sancho, nem conseguia ver, ainda que estivesse bem perto, o que eram; antes bem ia dizendo em voz alta:


"- Não fujais, covardes e vis criaturas; que somente um cavaleiro é o que os ataca.


"Nisto, ventou um pouco, e as grandes hélices começaram a mover-se, o qual visto por dom Quixote, disse:


"- Pois ainda que movais mais braços que os do gigante Briareo, me haveis de pagar.


"E dizendo isto, e encomendando-se de todo coração à sua senhora Dulcinea, pedindo-lhe que em tal momento crítico o socorresse, bem coberto de seu escudo, com a lança em riste, arremeteu a todo galope do Rocinante, e se chocou com o primeiro moinho que estava adiante; e dando-lhe uma lançada na hélice, esta foi girada com tanta fúria pelo vento, que fez a lança em pedaços, levando atrás o cavalo e o cavaleiro, que foi rolando muito maltratado pelo campo. Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo a toda velocidade de seu asno, e quando chegou, achou que não podia se mexer; tal foi o golpe que deu com ele o Rocinante.


"- Valha-me Deus! - disse Sancho -; não lhe disse eu a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e não se podia ignorar senão quem tivesse outra coisa na cabeça?


"-Cala-te, amigo Sancho - respondeu dom Quixote -, que as coisas da guerra, mais que outras, estão sujeitas à contínua mudança; quanto mais, que eu penso, e é assim verdade, que aquele mago Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos para tirar-me a glória de sua derrota: tal é a inimizade que me tem; mas ao cabo, ao cabo hão de poder pouco suas más artes contra a bondade de minha espada." (tradução livre do espanhol - págs. 57/59 - "El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra, Gênese e vocabulário de Martín Alonso, Editorial EDAF. S. A., Jorge Juan, 30, Madrid, 17ª edição, junho 2000 - grifos em negrito nossos.


Aqui estão os moinhos de vento de Campo de Criptana.


Moinho de Vento Pilon, semelhante ao que Dom Quixote atacou e se deu mal. Campo de Criptana, Província de Ciudad Real, Castela-Mancha, Espanha.



Cueva en La Martin. Campo de Criptana, Província de Ciudad Real, Castela-Mancha, Espanha.



Interior do Moinho de Vento, vendo-se a pedra de moer cereais ou mó, Campo de Criptana, Província de Ciudad Real, Castela-Mancha, Espanha.


c - Puerto Lápice


É um povoado famoso exatamente por ter sido citado algumas vezes por Cervantes no livro Dom Quixote, em razão de suas "ventas", e a expectativa do cavaleiro de viver grandes aventuras ali e fazer seu nome.


A "venta" ou venda, em português, era uma pousada, na qual havia estábulos e quartos, planejada para pernoite. Uma espécie de albergue da época, semelhante hoje aos hotéis de estrada.


Assim ocorreu na primeira saída de Dom Quixote, quando ele, após passar o dia inteiro andando no seu cavalo Rocinante, ao cair da noite, procurou abrigo para pernoitar. Na ocasião, ele precisava ser ordenado cavaleiro para que pudesse exercitar suas aventuras com legitimidade. Ao encontrar a venda de Puerto Lápice, Dom Quixote, em razão de sua perturbação mental, acreditava estar em um castelo medieval, inclusive com ponte levadiça e fosso de proteção, e o vendeiro seria o castelão (o governador do castelo). Assim, depois de muita confusão com os hóspedes, o vendeiro (castelão), enternecido com a inocência do "cavaleiro", resolveu levar o embuste em frente, promovendo a ordenação ou investidura de Dom Quixote como cavaleiro andante. Veja-se:


"Quase todo aquele dia caminhou sem acontecer-lhe coisa que de contar fosse, do que se desesperava, porque queria topar logo logo com quem pudesse experimentar o valor de seu forte braço. Autores há que dizem que a primeira aventura que lhe veio foi a do Puerto Lápice (...) ele andou todo aquele dia, e ao anoitecer seu feio cavalo e ele se achavam cansados e mortos de fome; e que, olhando a todas as partes por ver se descobriria algum castelo ou alguma cabana de pastores onde se recolher, e onde pudesse remediar sua grande necessidade, viu, não longe do caminho por onde ia, uma venda, que foi como se visse uma estrela, que não aos portais, senão aos alcázares de sua redenção lhe encaminhava. Deu-se pressa a caminhar, e chegou nela ao tempo que anoitecia. (pág. 29)


"(...) E como nosso aventureiro tudo quanto pensava, via ou imaginava lhe parecia ser fato e passar ao modo do que havia lido, logo que viu a venda se lhe apresentou como um castelo com suas quatro torres e pináculos de luzente prata, sem faltar-lhe sua ponte levadiça e fosso fundo, com todos aqueles aderentes que semelhantes castelos se pintam. (pág. 29)


(...)


"(...) Tudo o creu dom Quixote, e disse que ele estava ali pronto para obedecer-lhe, e que concluísse com a maior brevidade possível que pudesse; porque se fosse outra vez atacado, e se visse armado cavaleiro, não pensaria deixar pessoa viva no castelo, exceto aquelas que ele lhe mandasse, a quem, por seu respeito, deixaria.


"Advertido e temeroso disto o castelão, trouxe logo um livro onde registrava a palha e a cevada que dava aos carreteiros, e com um cabo de vela que lhe trazia um rapaz, e com as duas já ditas donzelas, veio aonde dom Quixote estava, a qual mandou ficar de joelhos; e lendo em seu manual (como que dissesse alguma devota oração), na metade da leitura ergueu a mão, e deu-lhe sobre o pescoço um bom golpe, e atrás dele, com sua espada, uma gentil pancada nas costas, sempre murmurando entre dentes como que rezasse. Feito isso, mandou a uma daquelas damas que lhe cingisse a espada; a qual o fez com muita desenvoltura e discrição, porque não era necessária pouca para não rebentar em riso a cada momento da cerimônia; mas as proezas que já haviam visto do novel cavaleiro lhes conteve as risadas. Ao cingir-lhe a espada, disse a boa senhora:


"-Deus faça a vossa mercê mui venturoso cavaleiro e lhe dê ventura nas lides." (tradução livre do espanhol - págs. 36/37 - "El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra, Gênese e vocabulário de Martín Alonso, Editorial EDAF. S. A., Jorge Juan, 30, Madrid, 17ª edição, junho 2000 - grifos em negrito nossos.


Pois bem, aqui está a "Venta de Don Quijote" ou "Venta del Quijote", a qual dizem que foi onde o fidalgo foi sagrado cavaleiro andante. Pairam dúvidas, porque a venda estaria em um imóvel do século XVIII. Mas certamente seria em um venda semelhante que Cervantes se inspirou para contar a estória.


Venta del Quijote, museu em homenagem à localização cervantina, Puerto Lápice, Província de Ciudad Real, Castela-Mancha, Espanha.


Agora para Andaluzia, primeiramente Córdova.


Fontes: Wikipedia e "España" Guías Visuales, DK El Pais Aguilar, Octava edición, Santillana Ediciones Generales, S. I. Madrid, 2011.

Comments


Obrigado por se subscrever!

SUBSCREVER

bottom of page